terça-feira, 13 de setembro de 2011

A noite

Saiu de algum lugar rumo a lugar algum numa noite de concreto quente na metrópole de céu vermelho. Consigo, um par de tênis furados calçando meias sujas, jeans rasgado nos joelhos, camisa pregada ao corpo pelo acumulo de suor de um dia inteiro e uma mochila cujo o conteúdo era menos valioso que a pobre mochila de estimação em si naquele corpo miúdo. Já passava da meia-noite, tarde demais para pegar um ônibus rumo ao seu destino clandestino. Seguiu a pé pelo concreto rachado pelo tempo. Passou por bocas, travestis, putas e pastores evangélicos, todos tão convictos e cheios de certezas quanto ao seu rumo da noite. Uma senhora fazia o passeio vespertino com sua cadela quase a uma da manhã. Carros com músicas altas passeavam indiscriminadamente. Nada fazia sentido, nem todo o perigo de vagabundear como um mulambo insano com a mente vazia. Antes de completar seu destino, parou em um posto de gasolina ao lado de um cabaré em busca de passagem para o dia seguinte de fé. Não existia mais. Queria terminar sua noite fatídica sem rumo com cervejas e cigarros. Gastou seus últimos dois e cinquenta em uma latinha de Coca-cola.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Selbstmord (parte 2)

Maria Lúcia era aquilo que poderia ser chamada de menina problemática. Conseguia intrigar a cabeça dos adultos quando tinha seus 14 anos. Causava repugnância da maioria de suas colegas de turma. Todos diziam que já não era virgem há tempos. Só se relacionava com caras mais velhos, ganhando assim a antipatia também dos caras de sua classe. Cabelo verde, piercing no nariz e na língua. Os Meninos mais maldosos diziam que ela tinha um piercing “lá também”; outros juravam que “um amigo de um amigo disse que lá tem uma tatuagem de caveira, igual do Iron Maiden”; outros diziam ainda que “os cabelos de lá também são verdes”. Claro que Maria Lúcia sabia de todos esses boatos e apesar de nada ser verdadeiro, não negava nenhum.

A maioria dos caras que ela ficava eram os amigos rockeiros do seu irmão. Depois de algum tempo, passou a conhecer seus homens sozinha, até chegar ao ponto da situação se inverter e seu irmão fazer amizade com os caras que pegavam Maria Lúcia. Mesmo com todos esses rolos e amizades, o detalhe fundamental para todas essas relações darem certo, era Jorge não descobrir os relacionamentos mais íntimos da sua irmã com seus amigos.

Os melhores amigos de Jorge não ousavam mexer com Malu por respeito e por medo de perder a amizade. Jorge no início era só Jorge. Gordo, na juventude com uma “juba” que impunha respeito. Sua expressão era predominantemente fechada, o que causava a antipatia de quase todo mundo. Quase, porque tinha seu amigo de turma Carrapato. Com Carrapato ele passou a conhecer pessoas que eram mais a ver com ele. Por intermédio de Carrapato conheceu seu xará, o Jorge Araújo, primo do Carrapato e foi então que surgiu o apelido Batera, dado pelo próprio Araújo. Naturalmente surgiu a ideia de montar uma banda e inicialmente eram os três. Batera começou a viver e se encontrar pela primeira vez em sua vida. A banda até que ia bem, mas Araújo não segurava a onda na guitarra e resolveu convidar seu amigo, um ano mais novo que o resto da turma, Marcos, que na época era seu vizinho. Todos se surpreenderam com sua desenvoltura e concentração. Jorge Batera pela primeira vez se sentiu com amigos de verdade. Sempre fora briguento, tampouco tinha habilidade com as palavras e para se socializar. Todos ali eram diferentes por verem o gordo que tocava bateria como ele era por dentro.

Maria Lúcia não se atrevia a tentar algo com aqueles amigos do irmão que eram dois anos mais velho. Sentia vontade; as vezes provocava para se afirmar, mas ao mesmo tempo sabia da importância deles para o irmão. No fim, ela pegava carona na onda deles e ia para shows conhecer novos caras naquele meio. Claro que os amigos também se sentiam provocados por Malu; ela parecia transbordar libido.

Na sala de aula de Maria Lúcia ela só não era totalmente excluída dos colegas, ou por inveja das meninas ou por decepção dos meninos, por uma única exceção: Julieta. Ela era de certa forma boa praça. Conseguia conviver bem com todos. Parecia a menina mais pura do mundo. Era encantadora também: cabelos em um tom entre o ruivo e o loiro bem lisos, olhos claros, pele bem clara, nem gorda nem magra. O que encantava mesmo era o seu caráter e bondade. Sempre tinha um ou outro menino que tentava alguma coisa, mas ela não se abria para isso, mas sempre os conquistava para a amizade. Era uma amiga como nenhuma outra. Porém, quando Malu entrou, as coisas mudaram um pouco.

Teve algumas pessoas que tentaram se aventurar a conversar com Maria Lúcia, mas era como se ela espantasse as pessoas com seu jeito de ser. Depois da rejeição quase geral, Julieta um dia, do nada, perguntou:

-Da uma folha?

Malu ficou olhando desconfiada e deu para Julieta uma folha e ficou intrigada com aquele sorriso besta que ela tinha na cara. Depois, ficou ainda mais intrigada com a continuação do questionário:

-Você não gosta muito desses idiotas, né?

Malu resolveu responder:

-Na verdade eles que não gostam de mim. Nem me conhecem e sabem de talhes da minha vida que nem eu sei. Eu queria ter mais amigos por aqui, mas as pessoas são tão idiotas comigo.

-Ah, nem se importa com isso não. Todos são assim porque, no fundo, todo mundo queria ser como você, mas ninguém tem coragem de viver assim, como realmente quer.

Malu ficou analisando aquela figura risonha de riso besta na cara. Sempre pensou que ela fosse uma das mais idiotas e burra daquela sala. Do nada, a mesma figura solta uma reflexão que nunca ninguém tinha dito para ela. Pela primeira vez se sentia alguém perto das pessoas “normais”. Por fim, se sentiu arrependida de sempre achá-los preconceituosos com ela. Se sentiu assim não pelo preconceito alheio, nunca deu valor para o que os outros pensavam ao seu respeito, e sim por perceber que o preconceito era bilateral e que ela havia julgado a única pessoa que tinha sido humana dentro da sala de aula sem realmente a conhecer. Sentiu uma vontade imensa de a conhecer, como se não pudesse perder mais tempo. E como se lesse seus pensamentos, a estranha risonha estende a mão:

-Julieta.

-Não, meu nome é Maria Lúcia...

-Eu sei, tô dizendo que meu nome é Julieta.

-Ah sim... Desculpa... - as duas riem juntas – bom, então tá, pode me chamar de Malu.

Mesmo que visualmente serem muito diferentes, com o tempo, descobriram que tinham gostos idênticos. Com o tempo se tornaram grandes amigas. Os colegas de sala logo estranharam essa relação e Julieta logo sentiu o peso daquela amizade. Passaram a frequentar uma a casa da outra. Para surpresa de Malu, ela era bem recebida pelos pais de Julieta. Diferente de outros adultos, até mesmo dos seus pais, os pais de Julieta a olhavam como se não houvesse nada fora do padrão no corpo de Maria Lúcia e a tratavam com carinho semelhante que era tratada por Julieta. Sentiu uma pontada de inveja daquela família.

Certo dia Malu chamou Julieta para assistir o ensaio da banda do irmão. O ensaio seria na garagem da nova casa do Araújo que ficava no Jardim América. Seria também o primeiro ensaio do novo vocalista, Rony. Rony tinha sido sugerido por Malu, uma vez que Marcos admitiu que não gostava de tocar e cantar, porque muitas vezes se atrapalhava (na verdade Marcos não gostava da própria voz). Malu conhecera Rony em uma festa no Metrópolis, boate alternativa da cidade. Os dois passaram a noite juntos. No outro dia se encontram no Vaca Brava, um parque da cidade no Setor Bueno, e Rony levara seu violão. Ele tocou “Hoje a noite não tem luar” e depois passaram a tarde se pegando. Tempos mais tarde Malu descobriu que ele era um conquistador barato e que só sabia tocar aquela música. Mesmo assim gostou dele pela ousadia e o perdoou por ter boa pegada, ser bonito e ter uma voz bonitinha. Quando ouviu seu irmão se queixando que precisava de um vocalista diferenciado, sugeriu Rony. De início todos ficaram desconfiados, mas o cara tinha o dom e se afirmou na banda e com os novos amigos.

No ensaio de estreia da casa do Araújo e do novo vocalista, Julieta apareceu. Com pouco tempo de ensaio, Julieta fala para Malu:

-Nossa, mas esse cara é muito foda! Quero ele pra mim!

-É, eu sei, ele é foda – Malu se gaba em seus pensamentos nostálgicos.

-E ele nem parece rockeiro, tirando o cabelo – repara Julieta.

Maria Lúcia estranha essa afirmação. Começa a reparar em Rony e vê que ele usa uma calça jeans rasgada e apertada em suas pernas magras, um All Star branco todo surrado e encardido, uma camisa colada do Angra, uma jaqueta jeans que parecia ter sido roupada de algum pedreiro em uma construção e tinha seus cabelos lisos um tanto sebosos caindo pelo pescoço. Realmente o cabelo era de rockeiro, mas suas roupas também eram bem características. Resolveu perguntar:

-Ele se brincar é o mais estiloso aqui. Não to entendendo por que não acha...

-Ele pode até gostar de rock, mas se não for o cabelo, nem parece muito não.

-De quem você tá falando?!

-De quem você tá falando?!

Malu olhou um pouco mais pros caras da banda. Carrapato usava uma camisa xadrez azul e o cabelo estava todo bagunçado. Seu irmão estava com um moicano recém-adquirido e uma camisa do Motörhead rasgada nas mangas. Araújo tocava guitarra sem camisa exibindo suas tatuagens pelo corpo e fazia muita pose. Por fim, restava o mais estranho, Marcos, que usava camisa lisa azul, calça jeans clara, sapatênis, óculos de grau e os cabelos estavam amarrados para trás, mas eram bem compridos.

-Você tá falando do Marcos?

-Não sei o nome dele.

-O guitarrista da direita de azul.

-Lógico!

Malu estranhou de início sua amiga por se interessar pelo aparentemente mais sem graça. Depois lembrou que ela própria já tinha provocado aquele cara, mas ele parecia ser tão sonso que nem percebeu que ela uma vez se agachou fingindo pegar qualquer coisa no chão só para mostrar sua calcinha fio dental. Ele era muito na dele e discreto, mas quando encostava na guitarra, parecia uma nova versão do Slash ou do Tom Marello. Lembrou de quando começou sua amizade com Julieta e também não poderia imaginar que ela gostava de rock de verdade e que era fã de Pink Floyd. Pareciam que eram feitos um para o outro.

Julieta no final do ensaio, foi falar com Marcos e os dois conversaram um pouco. Ele era muito simpático. Trocaram msn, conversaram madrugadas inteiras e passaram a se encontrar no Vaca Brava e nos ensaios. Pareciam um casal inseparável.

A vida de Marcos estaria marcada para sempre por aquela menina. Ele tinha 15 e ela 14 e ele não poderia imaginar que 5 anos mais tarde seu destino estava predeterminado por aquele ensaio na casa do Araújo. Nem Julieta poderia saber que estava marcada para a infelicidade devido a imensa felicidade daqueles tempos.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Selbstmord (parte 1)

Marcos levava uma vida comum de um jovem adulto. Levantava cedo para ir trabalhar em uma lanchonete da rodoviária que não ficava longe da sua casa. Era uma caminhada de 15 minutos até o seu trabalho. Não ganhava muito, mas dinheiro era algo que realmente não precisava fundamentalmente. Nem ele sabia o motivo pelo qual trabalhava e logo numa lanchonete de rodoviária (não que desprezasse seu trabalho, sabia como os seus colegas de trabalho valorizavam o pouco dinheiro que ganhavam ali), talvez trabalhasse só para preencher seu tempo tão vazio,ou para esquecer da vida, ou quem sabe para ganhar algum tipo de inspiração, se é que se pode adquirir algum tipo de inspiração em um lugar tão ausente de inspirações. Quem sabe a inspiração vinha daqueles que embarcavam e desembarcavam ali todos os dias, mas, na maioria dos casos, o efeito era o contrário.

Ele viera muito pequeno para Goiânia. Morava em São Paulo onde nascera e morara até seus 6 anos de idade. Se mudou com os pais para a "cidade caipira". Seu pai era representante de uma grande empresa de madeira e fora transferido. Na verdade ele só se mudou porque sabia que era questão de tempo da empresa na qual trabalhava falir. Além de toda a má organização na administração, trabalhava com madeira ilegal da Amazônia. Sabia também que ganhava muito mais do que merecia, salário decorrente da má administração de finanças. Como seu cunhado trabalhava em Goiânia, já sabia do porte promissor no setor de serviços que a cidade oferecia. Ele, a mulher e o cunhado abriram então um restaurante no centro da cidade; desde o início vendiam muito bem. Não eram ricos, mas tinham condições de dar tudo de melhor para o futuro do filho (um ano mais tarde viria mais um filho).

E Marcos realmente aproveitou do melhor que seus pais tinham a oferecer. O apartamento do centro não era grande, mas era bem localizado dentro de uma parte movimentada da cidade. Ficava perto do restaurante da família, que por muito tempo foi onde trabalhou. Apesar da boa relação com o pai, uma briga o fez se demitir e decidiu tomar o próprio rumo financeiramente, mesmo depois de feito as pazes com o seu velho.

Estudou em seu ensino fundamental em um colégio do centro mesmo. No ensino médio, estudou em um dos melhores colégios do Setor Bueno. Não era uma pessoa burra, gostava dos seus livros, seus jogos de RPG, acompanhava quase que religiosamente os jogos do São Paulo (aprendeu a gostar do tricolor com seu avô e sempre nas férias adorava ouvir as histórias dos memoráveis jogos do Diamante Negro) e também do Vila Nova (time local que aprendeu a gostar para contrariar os amigos e o próprio irmão que torciam para o Goiás) e principalmente amava a sua guitarra. Foi reprovado no segundo ano; no fim do terceiro não passou no vestibular e abandonou de vez os estudos. Não achava necessário ter um curso superior, se desse tudo certo seguiria uma carreira de músico e passaria o tempo estudando aquilo que achava necessário e que aprenderia nos livros esquecidos de um sebo que ficava algumas quadras da sua casa (o dono era seu amigo desde os tempos de ensino fundamental).

Ensaiava com sua banda em um galpão do Jardim América. Pegava 2 ônibus para chegar no local do ensaio (quando queria pensar na vida, pegava somente uma condução e caminhava por meia hora). Sabia tudo de Pink Floyd, Beatles, Led Zeppelin e da sua banda brasileira preferida, Sepultura, apesar de curtir pra caramba os Raimundos. Sua banda, porém, tocava algo mais parecido com The Killers e Oasis. Sua voz não era ruim, até ganhava uns trocados tocando a noite como "trovador solitário" em bares, shoppings, pizzarias e galerias. Mas cantava nada se comparado com o vocalista da sua banda "o novo Axl Rose". A sua banda se chamava The Trotsks. Não somente Marcos, mas todos os integrantes da banda achavam o nome tosco e ninguém sabia realmente o porquê da banda ter o nome de um líder da ex-União Soviética.

Todos sabiam do talento de Marcos. Se não fosse a banda (ou bando) que fazia parte, que tinham mais empolgados do que músicos propriamente, ele já estaria longe. Todos eram talentosos, mas não como Marcos. Mesmo sendo calado na maioria das vezes, sempre tinha boas composições e segurava a onda de todos, não deixava que ninguém os derrubasse. O resto da banda era de viciados que, por conta do vício, não cresciam tanto na carreira. Apesar de toda a pose do vocalista Rony (na verdade seu nome era Ronaldo, mas preferiu adotar um nome artístico e deixar de lado seu nome de jogador de futebol), todos tinham em Marcos um líder, um cara que sabia cuidar de todo mundo e que todo mundo cuidava muito bem do cara. Ele sabia do seu posto perante a banda, mas não se importava nada com Rony pagando de líder. Realmente ele era o galã, ele que pegava todas e o resto ficava com o resto mesmo.

Rony poderia parecer apenas um rostinho bonitinho sem nada na cabeça que usava de sua beleza e o dom da voz para conquistar as menininhas, mas Marquinhos (era assim que Rony o chamava) era tudo que Rony tinha realmente ali. Era viciado em cigarros e cerveja, tinha problemas antes dos shows, mas era nele que Marcos encontrava seu único amigo de verdade em muito tempo. Não que os outros não fossem seu amigo, mas ele era a coisa mais próxima de melhor amigo que já tivera. Rony sabia (na verdade mais sentia do que realmente sabia) disso e o protegia acima de tudo.

A banda também contava com o baixista Carrapato (seu nome de batismo era Carlos), o baterista Jorge “Batera” (o segundo nome era um apelido autoexplicativo) e o tecladista (as vezes guitarrista) Jorge Araújo. Carrapato namorava a irmã do Jorge Batera, o que causava uma certa tensão, já que Batera era ciumento em relação aos caras da banda com sua irmã. Segundo ele, sua irmã “não merece nenhum daqueles desajeitados”. Seria verdade, caso a irmã não fosse uma desajeitada como eles. A tensão não acabava por ai, porque quando acabava o ciume do Batera, começava o do próprio Carrapato, uma vez que Rony já havia pego ela tempos atrás. Tinha sido ela inclusive que apresentou Rony para a banda. O tecladista era mais tranquilo, nesse ponto se parecia muito com Marcos: era muito na dele. Ele tinha receio de não ser tão bom músico quanto os outros, andava muitas vezes reprimido, mas em outras horas sempre tinha boas piadas e bons divertimentos como anuncio de festas. Jorge Araújo era o mais popular dos cinco, mas quando sua depressão surgia do nada, se drogava e bebia bastante, o que deixava todos muito apreensivos. Apesar da popularidade, não tinha amigos além daqueles 4 perdidos.

Marcos já tinha experimentado de tudo um pouco. Uma vez vomitou muito antes de um show no Martim Cererê; tocou com muita febre e soando muito. Foi a hora que viu que não era aquilo que ele queria pra si, não ia deixar que isso atrapalhasse seu som. Se contentava com umas cervejinhas para relaxar. Também, se ele não ficasse sóbrio, não teria ninguém pra cuidar de ninguém.

Até pouco tempo ele usava cabelo comprido que iam até seus ombros. Quando começou a trabalhar, foi obrigado a cortá-lo. Não tinha um visual muito rockeiro. As vezes usava algumas camisetas de bandas, mas em geral andava com camisas lisas e calça jeans. Não tinha tatuagens e também parou de usar brincos por conta da sua ocupação. Preferiu não usá-los mais até mesmo fora do trabalho. Quando tinha shows, a maioria deles na Estação Goiânia ou no Martim Cererê, colocava uma camisa xadrez ou uma blusa de frio mais bem trabalhada.

Não tinha uma vida amorosa movimentada. Só tivera mesmo três relacionamentos. O primeiro, o melhor de todos, fora com Julieta. Até então foi o grande amor da sua vida. Após ela, se relacionou com Simone. Muitos diziam que era muito bonita e gostosa, tinha uma vida bacana, morava em condomínio fechado e estudava Direito da PUC. Namoraram uns 3 meses e terminaram. Se relacionou então com sua vizinha, Angélica. Angélica era mais nova, tinha acabado de sair do colégio. Sempre gostou dele, mesmo sabendo que sua paixão era platônica, sempre teve esperança de um dia conquistar ele. No dia em que Marcos brigara com Simone causando o fim do namoro, ele e sua banda fizeram um ensaio que foi até depois da meia noite. O horário tinha sido tão avançado por conta da raiva de Marcos que queria ensaiar bastante para esquecer da raiva que sentia por Simone. Como o ensaio tardou bastante, já não havia mais ônibus nas ruas. Marcos voltara para casa a pé mesmo. Quando chegara, já eram quase 3 da manhã. Sem vontade de subir para o seu apartamento, fora para a área de laser do prédio. Encontrara Angélica dormindo em uma poltrona, ainda com o uniforme do cursinho (fazia ensino médio de manhã e cursinho a noite) e com os livros junto ao corpo. Marcos sabia que ela queria medicina e estudava duro valorizando o dinheiro suado de seus pais e pela primeira vez vira ela com outros olhos; não achou ela uma menina empolgada. Reparara as curvas de seu corpo, seus cabelos loiros e ondulados maltratados cobrindo metade do rosto. Vira por um botão aberto da camisa seu sutiã com bolinhas e começou achá-la muito atraente. Ainda em meio de seus pensamentos libidinosos, pensara em sair para não acordar a garota e ir esfriar a cabeça em seu quarto mesmo e então ela abriu o olho e o viu. Marcos pedira desculpas, ela sorrira meio sem jeito e disse que não tinha problema; se levantara com seus livros, se aproximara da porta (Marcos interrompia a saída) e se beijaram. Os pais dela tinham viajado para um enterro de um parente e ela ficara para as provas de final de ano. A noite dos dois se encerrara no apartamento da jovem. Marcos ficara muito pensativo. Mesmo não tendo um carinho muito além de amizade com Angélica, não tinha tido uma noite tão prazerosa desde sua amada Julieta. Simone era uma boa namorada apesar de sua seriedade. A primeira noite dos dois foi algo realmente memorável, mas as outras não passavam de obrigação para ele. Foi então que percebera que desde a ida de Angélica ele nunca tinha pensado em relacionamento, somente na música. Menos de um mês depois reatou com Simone tentando dar uma chance para o amor. O relacionamento durou alguns meses a mais e todas as vezes que terminavam, aparecia a doce Angélica para suprir a falta sexual. Fazia um pouco mais de um mês que Marcos e Simone terminaram de vez e até onde ele sabia, ela tava namorando um carinha da faculdade dela. Dessa vez ele não foi para os braços de Angélica e se contentou e dizer para si mesmo que ninguém seria como Julieta foi para ele.

Seu dia agora se resumia em ir trabalhar de manhã, descansar o resto da tarde, ensaiar a noite e dormir muito. Os Trotsks se preparavam para tocar em um festival em Goiânia no meio do ano e depois fazer shows em Brasília, Belo Horizonte e São Paulo. Quando não tinha nada para fazer e queria fazer alguma coisa, jogava boliche na rodoviária (virou amigo do dono e jogava de graça antes do boliche abrir), tentava compor uma música ou fazia planos para a sua viagem. Queria ir no Morumbi ver jogos do São Paulo, passar na galeria do rock, visitar sua tia Nilza em BH e seu avó em São Paulo. Do fundo do seu coração queria que esses 4 shows que se preparavam desse algum resultado e que finalmente ele pudesse começar a viver somente da música. Quando estava se aproximando mais de julho, os ensaios começavam ainda a tarde e iam até a noite. Não pensava em nada. Nem ler mais seus livros ele lia. Só ensaiava, trabalhava e dormia.

Um dia de madrugada teve um pesadelo. Acordou afoito. Tentou se lembrar qual fora o sonho mas nada se lembrara. Viu que estava quase amanhecendo, resolveu então lavar o rosto e tentar dormir novamente. Foi então que uma pontada em seu peito do nada começou a fazer ele pensar desesperadamente em alguma coisa que nem ele sabia o que era. Sua cabeça ficou a mil por uns 30 segundos e depois parou. Teve a sensação de que alguma coisa ia acontecer. Mais uns 10 segundos se passaram até ele relaxar a cabeça no travesseiro e chegou a falar baixinho:

-Bobagem.

Dormiu quase que instantaneamente. Mal sabia ele que alguma coisa realmente o esperava.