sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Selbstmord (parte 2)

Maria Lúcia era aquilo que poderia ser chamada de menina problemática. Conseguia intrigar a cabeça dos adultos quando tinha seus 14 anos. Causava repugnância da maioria de suas colegas de turma. Todos diziam que já não era virgem há tempos. Só se relacionava com caras mais velhos, ganhando assim a antipatia também dos caras de sua classe. Cabelo verde, piercing no nariz e na língua. Os Meninos mais maldosos diziam que ela tinha um piercing “lá também”; outros juravam que “um amigo de um amigo disse que lá tem uma tatuagem de caveira, igual do Iron Maiden”; outros diziam ainda que “os cabelos de lá também são verdes”. Claro que Maria Lúcia sabia de todos esses boatos e apesar de nada ser verdadeiro, não negava nenhum.

A maioria dos caras que ela ficava eram os amigos rockeiros do seu irmão. Depois de algum tempo, passou a conhecer seus homens sozinha, até chegar ao ponto da situação se inverter e seu irmão fazer amizade com os caras que pegavam Maria Lúcia. Mesmo com todos esses rolos e amizades, o detalhe fundamental para todas essas relações darem certo, era Jorge não descobrir os relacionamentos mais íntimos da sua irmã com seus amigos.

Os melhores amigos de Jorge não ousavam mexer com Malu por respeito e por medo de perder a amizade. Jorge no início era só Jorge. Gordo, na juventude com uma “juba” que impunha respeito. Sua expressão era predominantemente fechada, o que causava a antipatia de quase todo mundo. Quase, porque tinha seu amigo de turma Carrapato. Com Carrapato ele passou a conhecer pessoas que eram mais a ver com ele. Por intermédio de Carrapato conheceu seu xará, o Jorge Araújo, primo do Carrapato e foi então que surgiu o apelido Batera, dado pelo próprio Araújo. Naturalmente surgiu a ideia de montar uma banda e inicialmente eram os três. Batera começou a viver e se encontrar pela primeira vez em sua vida. A banda até que ia bem, mas Araújo não segurava a onda na guitarra e resolveu convidar seu amigo, um ano mais novo que o resto da turma, Marcos, que na época era seu vizinho. Todos se surpreenderam com sua desenvoltura e concentração. Jorge Batera pela primeira vez se sentiu com amigos de verdade. Sempre fora briguento, tampouco tinha habilidade com as palavras e para se socializar. Todos ali eram diferentes por verem o gordo que tocava bateria como ele era por dentro.

Maria Lúcia não se atrevia a tentar algo com aqueles amigos do irmão que eram dois anos mais velho. Sentia vontade; as vezes provocava para se afirmar, mas ao mesmo tempo sabia da importância deles para o irmão. No fim, ela pegava carona na onda deles e ia para shows conhecer novos caras naquele meio. Claro que os amigos também se sentiam provocados por Malu; ela parecia transbordar libido.

Na sala de aula de Maria Lúcia ela só não era totalmente excluída dos colegas, ou por inveja das meninas ou por decepção dos meninos, por uma única exceção: Julieta. Ela era de certa forma boa praça. Conseguia conviver bem com todos. Parecia a menina mais pura do mundo. Era encantadora também: cabelos em um tom entre o ruivo e o loiro bem lisos, olhos claros, pele bem clara, nem gorda nem magra. O que encantava mesmo era o seu caráter e bondade. Sempre tinha um ou outro menino que tentava alguma coisa, mas ela não se abria para isso, mas sempre os conquistava para a amizade. Era uma amiga como nenhuma outra. Porém, quando Malu entrou, as coisas mudaram um pouco.

Teve algumas pessoas que tentaram se aventurar a conversar com Maria Lúcia, mas era como se ela espantasse as pessoas com seu jeito de ser. Depois da rejeição quase geral, Julieta um dia, do nada, perguntou:

-Da uma folha?

Malu ficou olhando desconfiada e deu para Julieta uma folha e ficou intrigada com aquele sorriso besta que ela tinha na cara. Depois, ficou ainda mais intrigada com a continuação do questionário:

-Você não gosta muito desses idiotas, né?

Malu resolveu responder:

-Na verdade eles que não gostam de mim. Nem me conhecem e sabem de talhes da minha vida que nem eu sei. Eu queria ter mais amigos por aqui, mas as pessoas são tão idiotas comigo.

-Ah, nem se importa com isso não. Todos são assim porque, no fundo, todo mundo queria ser como você, mas ninguém tem coragem de viver assim, como realmente quer.

Malu ficou analisando aquela figura risonha de riso besta na cara. Sempre pensou que ela fosse uma das mais idiotas e burra daquela sala. Do nada, a mesma figura solta uma reflexão que nunca ninguém tinha dito para ela. Pela primeira vez se sentia alguém perto das pessoas “normais”. Por fim, se sentiu arrependida de sempre achá-los preconceituosos com ela. Se sentiu assim não pelo preconceito alheio, nunca deu valor para o que os outros pensavam ao seu respeito, e sim por perceber que o preconceito era bilateral e que ela havia julgado a única pessoa que tinha sido humana dentro da sala de aula sem realmente a conhecer. Sentiu uma vontade imensa de a conhecer, como se não pudesse perder mais tempo. E como se lesse seus pensamentos, a estranha risonha estende a mão:

-Julieta.

-Não, meu nome é Maria Lúcia...

-Eu sei, tô dizendo que meu nome é Julieta.

-Ah sim... Desculpa... - as duas riem juntas – bom, então tá, pode me chamar de Malu.

Mesmo que visualmente serem muito diferentes, com o tempo, descobriram que tinham gostos idênticos. Com o tempo se tornaram grandes amigas. Os colegas de sala logo estranharam essa relação e Julieta logo sentiu o peso daquela amizade. Passaram a frequentar uma a casa da outra. Para surpresa de Malu, ela era bem recebida pelos pais de Julieta. Diferente de outros adultos, até mesmo dos seus pais, os pais de Julieta a olhavam como se não houvesse nada fora do padrão no corpo de Maria Lúcia e a tratavam com carinho semelhante que era tratada por Julieta. Sentiu uma pontada de inveja daquela família.

Certo dia Malu chamou Julieta para assistir o ensaio da banda do irmão. O ensaio seria na garagem da nova casa do Araújo que ficava no Jardim América. Seria também o primeiro ensaio do novo vocalista, Rony. Rony tinha sido sugerido por Malu, uma vez que Marcos admitiu que não gostava de tocar e cantar, porque muitas vezes se atrapalhava (na verdade Marcos não gostava da própria voz). Malu conhecera Rony em uma festa no Metrópolis, boate alternativa da cidade. Os dois passaram a noite juntos. No outro dia se encontram no Vaca Brava, um parque da cidade no Setor Bueno, e Rony levara seu violão. Ele tocou “Hoje a noite não tem luar” e depois passaram a tarde se pegando. Tempos mais tarde Malu descobriu que ele era um conquistador barato e que só sabia tocar aquela música. Mesmo assim gostou dele pela ousadia e o perdoou por ter boa pegada, ser bonito e ter uma voz bonitinha. Quando ouviu seu irmão se queixando que precisava de um vocalista diferenciado, sugeriu Rony. De início todos ficaram desconfiados, mas o cara tinha o dom e se afirmou na banda e com os novos amigos.

No ensaio de estreia da casa do Araújo e do novo vocalista, Julieta apareceu. Com pouco tempo de ensaio, Julieta fala para Malu:

-Nossa, mas esse cara é muito foda! Quero ele pra mim!

-É, eu sei, ele é foda – Malu se gaba em seus pensamentos nostálgicos.

-E ele nem parece rockeiro, tirando o cabelo – repara Julieta.

Maria Lúcia estranha essa afirmação. Começa a reparar em Rony e vê que ele usa uma calça jeans rasgada e apertada em suas pernas magras, um All Star branco todo surrado e encardido, uma camisa colada do Angra, uma jaqueta jeans que parecia ter sido roupada de algum pedreiro em uma construção e tinha seus cabelos lisos um tanto sebosos caindo pelo pescoço. Realmente o cabelo era de rockeiro, mas suas roupas também eram bem características. Resolveu perguntar:

-Ele se brincar é o mais estiloso aqui. Não to entendendo por que não acha...

-Ele pode até gostar de rock, mas se não for o cabelo, nem parece muito não.

-De quem você tá falando?!

-De quem você tá falando?!

Malu olhou um pouco mais pros caras da banda. Carrapato usava uma camisa xadrez azul e o cabelo estava todo bagunçado. Seu irmão estava com um moicano recém-adquirido e uma camisa do Motörhead rasgada nas mangas. Araújo tocava guitarra sem camisa exibindo suas tatuagens pelo corpo e fazia muita pose. Por fim, restava o mais estranho, Marcos, que usava camisa lisa azul, calça jeans clara, sapatênis, óculos de grau e os cabelos estavam amarrados para trás, mas eram bem compridos.

-Você tá falando do Marcos?

-Não sei o nome dele.

-O guitarrista da direita de azul.

-Lógico!

Malu estranhou de início sua amiga por se interessar pelo aparentemente mais sem graça. Depois lembrou que ela própria já tinha provocado aquele cara, mas ele parecia ser tão sonso que nem percebeu que ela uma vez se agachou fingindo pegar qualquer coisa no chão só para mostrar sua calcinha fio dental. Ele era muito na dele e discreto, mas quando encostava na guitarra, parecia uma nova versão do Slash ou do Tom Marello. Lembrou de quando começou sua amizade com Julieta e também não poderia imaginar que ela gostava de rock de verdade e que era fã de Pink Floyd. Pareciam que eram feitos um para o outro.

Julieta no final do ensaio, foi falar com Marcos e os dois conversaram um pouco. Ele era muito simpático. Trocaram msn, conversaram madrugadas inteiras e passaram a se encontrar no Vaca Brava e nos ensaios. Pareciam um casal inseparável.

A vida de Marcos estaria marcada para sempre por aquela menina. Ele tinha 15 e ela 14 e ele não poderia imaginar que 5 anos mais tarde seu destino estava predeterminado por aquele ensaio na casa do Araújo. Nem Julieta poderia saber que estava marcada para a infelicidade devido a imensa felicidade daqueles tempos.

3 comentários: