quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Selbstmord (parte 1)

Marcos levava uma vida comum de um jovem adulto. Levantava cedo para ir trabalhar em uma lanchonete da rodoviária que não ficava longe da sua casa. Era uma caminhada de 15 minutos até o seu trabalho. Não ganhava muito, mas dinheiro era algo que realmente não precisava fundamentalmente. Nem ele sabia o motivo pelo qual trabalhava e logo numa lanchonete de rodoviária (não que desprezasse seu trabalho, sabia como os seus colegas de trabalho valorizavam o pouco dinheiro que ganhavam ali), talvez trabalhasse só para preencher seu tempo tão vazio,ou para esquecer da vida, ou quem sabe para ganhar algum tipo de inspiração, se é que se pode adquirir algum tipo de inspiração em um lugar tão ausente de inspirações. Quem sabe a inspiração vinha daqueles que embarcavam e desembarcavam ali todos os dias, mas, na maioria dos casos, o efeito era o contrário.

Ele viera muito pequeno para Goiânia. Morava em São Paulo onde nascera e morara até seus 6 anos de idade. Se mudou com os pais para a "cidade caipira". Seu pai era representante de uma grande empresa de madeira e fora transferido. Na verdade ele só se mudou porque sabia que era questão de tempo da empresa na qual trabalhava falir. Além de toda a má organização na administração, trabalhava com madeira ilegal da Amazônia. Sabia também que ganhava muito mais do que merecia, salário decorrente da má administração de finanças. Como seu cunhado trabalhava em Goiânia, já sabia do porte promissor no setor de serviços que a cidade oferecia. Ele, a mulher e o cunhado abriram então um restaurante no centro da cidade; desde o início vendiam muito bem. Não eram ricos, mas tinham condições de dar tudo de melhor para o futuro do filho (um ano mais tarde viria mais um filho).

E Marcos realmente aproveitou do melhor que seus pais tinham a oferecer. O apartamento do centro não era grande, mas era bem localizado dentro de uma parte movimentada da cidade. Ficava perto do restaurante da família, que por muito tempo foi onde trabalhou. Apesar da boa relação com o pai, uma briga o fez se demitir e decidiu tomar o próprio rumo financeiramente, mesmo depois de feito as pazes com o seu velho.

Estudou em seu ensino fundamental em um colégio do centro mesmo. No ensino médio, estudou em um dos melhores colégios do Setor Bueno. Não era uma pessoa burra, gostava dos seus livros, seus jogos de RPG, acompanhava quase que religiosamente os jogos do São Paulo (aprendeu a gostar do tricolor com seu avô e sempre nas férias adorava ouvir as histórias dos memoráveis jogos do Diamante Negro) e também do Vila Nova (time local que aprendeu a gostar para contrariar os amigos e o próprio irmão que torciam para o Goiás) e principalmente amava a sua guitarra. Foi reprovado no segundo ano; no fim do terceiro não passou no vestibular e abandonou de vez os estudos. Não achava necessário ter um curso superior, se desse tudo certo seguiria uma carreira de músico e passaria o tempo estudando aquilo que achava necessário e que aprenderia nos livros esquecidos de um sebo que ficava algumas quadras da sua casa (o dono era seu amigo desde os tempos de ensino fundamental).

Ensaiava com sua banda em um galpão do Jardim América. Pegava 2 ônibus para chegar no local do ensaio (quando queria pensar na vida, pegava somente uma condução e caminhava por meia hora). Sabia tudo de Pink Floyd, Beatles, Led Zeppelin e da sua banda brasileira preferida, Sepultura, apesar de curtir pra caramba os Raimundos. Sua banda, porém, tocava algo mais parecido com The Killers e Oasis. Sua voz não era ruim, até ganhava uns trocados tocando a noite como "trovador solitário" em bares, shoppings, pizzarias e galerias. Mas cantava nada se comparado com o vocalista da sua banda "o novo Axl Rose". A sua banda se chamava The Trotsks. Não somente Marcos, mas todos os integrantes da banda achavam o nome tosco e ninguém sabia realmente o porquê da banda ter o nome de um líder da ex-União Soviética.

Todos sabiam do talento de Marcos. Se não fosse a banda (ou bando) que fazia parte, que tinham mais empolgados do que músicos propriamente, ele já estaria longe. Todos eram talentosos, mas não como Marcos. Mesmo sendo calado na maioria das vezes, sempre tinha boas composições e segurava a onda de todos, não deixava que ninguém os derrubasse. O resto da banda era de viciados que, por conta do vício, não cresciam tanto na carreira. Apesar de toda a pose do vocalista Rony (na verdade seu nome era Ronaldo, mas preferiu adotar um nome artístico e deixar de lado seu nome de jogador de futebol), todos tinham em Marcos um líder, um cara que sabia cuidar de todo mundo e que todo mundo cuidava muito bem do cara. Ele sabia do seu posto perante a banda, mas não se importava nada com Rony pagando de líder. Realmente ele era o galã, ele que pegava todas e o resto ficava com o resto mesmo.

Rony poderia parecer apenas um rostinho bonitinho sem nada na cabeça que usava de sua beleza e o dom da voz para conquistar as menininhas, mas Marquinhos (era assim que Rony o chamava) era tudo que Rony tinha realmente ali. Era viciado em cigarros e cerveja, tinha problemas antes dos shows, mas era nele que Marcos encontrava seu único amigo de verdade em muito tempo. Não que os outros não fossem seu amigo, mas ele era a coisa mais próxima de melhor amigo que já tivera. Rony sabia (na verdade mais sentia do que realmente sabia) disso e o protegia acima de tudo.

A banda também contava com o baixista Carrapato (seu nome de batismo era Carlos), o baterista Jorge “Batera” (o segundo nome era um apelido autoexplicativo) e o tecladista (as vezes guitarrista) Jorge Araújo. Carrapato namorava a irmã do Jorge Batera, o que causava uma certa tensão, já que Batera era ciumento em relação aos caras da banda com sua irmã. Segundo ele, sua irmã “não merece nenhum daqueles desajeitados”. Seria verdade, caso a irmã não fosse uma desajeitada como eles. A tensão não acabava por ai, porque quando acabava o ciume do Batera, começava o do próprio Carrapato, uma vez que Rony já havia pego ela tempos atrás. Tinha sido ela inclusive que apresentou Rony para a banda. O tecladista era mais tranquilo, nesse ponto se parecia muito com Marcos: era muito na dele. Ele tinha receio de não ser tão bom músico quanto os outros, andava muitas vezes reprimido, mas em outras horas sempre tinha boas piadas e bons divertimentos como anuncio de festas. Jorge Araújo era o mais popular dos cinco, mas quando sua depressão surgia do nada, se drogava e bebia bastante, o que deixava todos muito apreensivos. Apesar da popularidade, não tinha amigos além daqueles 4 perdidos.

Marcos já tinha experimentado de tudo um pouco. Uma vez vomitou muito antes de um show no Martim Cererê; tocou com muita febre e soando muito. Foi a hora que viu que não era aquilo que ele queria pra si, não ia deixar que isso atrapalhasse seu som. Se contentava com umas cervejinhas para relaxar. Também, se ele não ficasse sóbrio, não teria ninguém pra cuidar de ninguém.

Até pouco tempo ele usava cabelo comprido que iam até seus ombros. Quando começou a trabalhar, foi obrigado a cortá-lo. Não tinha um visual muito rockeiro. As vezes usava algumas camisetas de bandas, mas em geral andava com camisas lisas e calça jeans. Não tinha tatuagens e também parou de usar brincos por conta da sua ocupação. Preferiu não usá-los mais até mesmo fora do trabalho. Quando tinha shows, a maioria deles na Estação Goiânia ou no Martim Cererê, colocava uma camisa xadrez ou uma blusa de frio mais bem trabalhada.

Não tinha uma vida amorosa movimentada. Só tivera mesmo três relacionamentos. O primeiro, o melhor de todos, fora com Julieta. Até então foi o grande amor da sua vida. Após ela, se relacionou com Simone. Muitos diziam que era muito bonita e gostosa, tinha uma vida bacana, morava em condomínio fechado e estudava Direito da PUC. Namoraram uns 3 meses e terminaram. Se relacionou então com sua vizinha, Angélica. Angélica era mais nova, tinha acabado de sair do colégio. Sempre gostou dele, mesmo sabendo que sua paixão era platônica, sempre teve esperança de um dia conquistar ele. No dia em que Marcos brigara com Simone causando o fim do namoro, ele e sua banda fizeram um ensaio que foi até depois da meia noite. O horário tinha sido tão avançado por conta da raiva de Marcos que queria ensaiar bastante para esquecer da raiva que sentia por Simone. Como o ensaio tardou bastante, já não havia mais ônibus nas ruas. Marcos voltara para casa a pé mesmo. Quando chegara, já eram quase 3 da manhã. Sem vontade de subir para o seu apartamento, fora para a área de laser do prédio. Encontrara Angélica dormindo em uma poltrona, ainda com o uniforme do cursinho (fazia ensino médio de manhã e cursinho a noite) e com os livros junto ao corpo. Marcos sabia que ela queria medicina e estudava duro valorizando o dinheiro suado de seus pais e pela primeira vez vira ela com outros olhos; não achou ela uma menina empolgada. Reparara as curvas de seu corpo, seus cabelos loiros e ondulados maltratados cobrindo metade do rosto. Vira por um botão aberto da camisa seu sutiã com bolinhas e começou achá-la muito atraente. Ainda em meio de seus pensamentos libidinosos, pensara em sair para não acordar a garota e ir esfriar a cabeça em seu quarto mesmo e então ela abriu o olho e o viu. Marcos pedira desculpas, ela sorrira meio sem jeito e disse que não tinha problema; se levantara com seus livros, se aproximara da porta (Marcos interrompia a saída) e se beijaram. Os pais dela tinham viajado para um enterro de um parente e ela ficara para as provas de final de ano. A noite dos dois se encerrara no apartamento da jovem. Marcos ficara muito pensativo. Mesmo não tendo um carinho muito além de amizade com Angélica, não tinha tido uma noite tão prazerosa desde sua amada Julieta. Simone era uma boa namorada apesar de sua seriedade. A primeira noite dos dois foi algo realmente memorável, mas as outras não passavam de obrigação para ele. Foi então que percebera que desde a ida de Angélica ele nunca tinha pensado em relacionamento, somente na música. Menos de um mês depois reatou com Simone tentando dar uma chance para o amor. O relacionamento durou alguns meses a mais e todas as vezes que terminavam, aparecia a doce Angélica para suprir a falta sexual. Fazia um pouco mais de um mês que Marcos e Simone terminaram de vez e até onde ele sabia, ela tava namorando um carinha da faculdade dela. Dessa vez ele não foi para os braços de Angélica e se contentou e dizer para si mesmo que ninguém seria como Julieta foi para ele.

Seu dia agora se resumia em ir trabalhar de manhã, descansar o resto da tarde, ensaiar a noite e dormir muito. Os Trotsks se preparavam para tocar em um festival em Goiânia no meio do ano e depois fazer shows em Brasília, Belo Horizonte e São Paulo. Quando não tinha nada para fazer e queria fazer alguma coisa, jogava boliche na rodoviária (virou amigo do dono e jogava de graça antes do boliche abrir), tentava compor uma música ou fazia planos para a sua viagem. Queria ir no Morumbi ver jogos do São Paulo, passar na galeria do rock, visitar sua tia Nilza em BH e seu avó em São Paulo. Do fundo do seu coração queria que esses 4 shows que se preparavam desse algum resultado e que finalmente ele pudesse começar a viver somente da música. Quando estava se aproximando mais de julho, os ensaios começavam ainda a tarde e iam até a noite. Não pensava em nada. Nem ler mais seus livros ele lia. Só ensaiava, trabalhava e dormia.

Um dia de madrugada teve um pesadelo. Acordou afoito. Tentou se lembrar qual fora o sonho mas nada se lembrara. Viu que estava quase amanhecendo, resolveu então lavar o rosto e tentar dormir novamente. Foi então que uma pontada em seu peito do nada começou a fazer ele pensar desesperadamente em alguma coisa que nem ele sabia o que era. Sua cabeça ficou a mil por uns 30 segundos e depois parou. Teve a sensação de que alguma coisa ia acontecer. Mais uns 10 segundos se passaram até ele relaxar a cabeça no travesseiro e chegou a falar baixinho:

-Bobagem.

Dormiu quase que instantaneamente. Mal sabia ele que alguma coisa realmente o esperava.

2 comentários:

  1. não somente o corpo, mas perder a alma, ou melhor, se perder na alma também mata... mata a alma.

    ResponderExcluir